segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Neurofisiologia e a Formação Docente


As células nervosas são as unidades elementares que atuam na elaboração do comportamento, das sensações, da percepção, do controle dos movimentos e das emoções, compreende-las significa um importante passo no entendimento da aprendizagem. Todas as modificações que ocorrem durante a aprendizagem ocorrem em um primeiro momento nessas células, entender as alterações no tecido nervoso decorrente de aprendizagens ou do desenvolvimento auxiliam na tomada de decisões do dia a dia do educador. Tais saberes se inserem no processo educacional de maneira que o educador e os administradores educacionais possam elaborar estratégias que facilitem a aprendizagem, bem como contribuir de forma marcante e crítica na elaboração dos cardápios da merenda escolar, na administração de psicofármacos e nas diferentes alternativas de estimulação neural.
As células nervosas são compostas de quatro partes principais (figura 1). Inicialmente, os dendritos, bastante ramificados e que são as portas de entrada de estímulos na célula (em suas porções terminais formam os botões pós-sinápticos), estímulos estes que podem vir de células sensoriais na retina, na pele ou no epitélio olfatório no nariz, das células da orelha interna ou ainda das papilas gustativas localizadas na língua, ou podem vir de outras células dos sistemas nervoso, imune ou endócrino. O corpo celular, onde encontramos o núcleo e os principais componentes celulares, tem importante função na fabricação das moléculas comunicantes do sistema e na tomada de decisões da célula neural, de seguir transmitindo o impulso ou de bloquear o mesmo. Os dendritos e o corpo celular constituem o que costumamos designar por substância cinzenta ou massa cinzenta do cérebro. O axônio é o fio condutor de estímulos até o próximo neurônio ou ainda até uma célula muscular, ele é único, mas pode se ramificar em centenas de milhares de botões terminais (ou botões préssinápticos) e apresentar 10.000 ou até 100.000 outras conexões. Por ultimo, as fendas sinápticas, espaços nos quais as células neurais se comunicam umas com as outras; são estreitas conexões entre os botões terminais préssinápticos dos axônios e os botões pós-sinápticos geralmente localizados nos prolongamentos de dendritos e nos corpos dos neurônios comunicantes. Neste local são liberados pelo neurônio préssináptico os neurotransmissores que irão atuar nas membranas plasmáticas pós-sinápticas.


FIGURA 1 – Neurônio contendo suas principais estruturas citoplasmáticas.
FONTE: CARLSON, Neil. Fisiologia do comportamento. 7.ed. São Paulo: Manole, 2002. p. 28.

Tão importante quanto os saberes sobre esta estrutura, é sua constituição molecular, em especial a constituição do longo cabo condutor de estímulos; o axônio. Os axônios são as porções das células nervosas que constituem a substância branca, responsável pela condução do impulso elétrico e do sinal ao longo da sua extensão até a fenda sináptica. De maneira metafórica podemos pensar neste cabo enquanto um fio de eletricidade, que estando encapado conduz de forma mais rápida e precisa a eletricidade, deixando a habilidade cognitiva mais rápida e de maior precisão. A substância branca deve-se ao fato de o axônio apresentar um revestimento lipídico, uma gordura, que isola eletricamente esta parte da célula, a Bainha de Mielina. Assim, quanto melhor encapado mais eficaz será a transmissão e condução do sinal e facilitada será a liberação de neurotransmissores na fenda sináptica.
Um fundamental desdobramento deste conteúdo na formação docente refere-se aos hábitos alimentares e seu impacto sobre os processos cognitivos, a saúde e integridade do sistema nervoso. A bainha de mielina, aquela capa de lipídios que reveste os axônios e aumenta a velocidade da condução eletroquímica das células nervosas, é formada principalmente por Omega 3 (presente nos peixes, ovos e derivados de animais que forrageiam, sem serem criados com ração, e de forma menos eficiente e acessível nos grãos como quinoa, amaranto, linhaça) e por Vitamina B12, a cianocobalamina, sintetizada pelas bactérias da nossa flora intestinal (iogurtes) a partir do sal mineral cobalto (encontrado em folhas de verde intenso, como rúcula, couve, brócolis). A maioria dos casos de depressão pós-parto poderiam ser resolvidos com adição de Omega 3 na dieta das gestantes e lactantes, que necessitam prover os fetos e recém nascidos deste ácido graxo para formação do sistema nervoso dos mesmos.
Outro componente importante na formação da bainha de mielina é a Vitamina D (calciferol) cujo precursor é encontrado em peixes, gema do ovo, óleos vegetais, mas que necessitam de raios UV para serem transformados na vitamina ativa. Por este motivo, pessoas que ficam muito tempo sem sol podem desenvolver inclusive transtornos do humor (Callegaro, 2006). De 15 a 20 minutos de raios de sol diretamente sobre a pele, sem estar filtrado por vidro ou protetor solar, com 25% do corpo exposto.
Existem nutrientes diretamente relacionados com a memória e aprendizagem. Um dos principais neurotransmissores envolvidos na aprendizagem é a Acetilcolina, formado por agrupamentos acetil, comuns nas células, e colina, substância encontrada na gema do ovo. Também a Vitamina B1, ou tiamina, encontrada em leveduras, cacau, amendoim, castanhas, está diretamente correlacionada com a memória de fatos e dados, o que sua insuficiência no cérebro, provocada pelo consumo abusivo de álcool poderá dificultar a absorção e disponibilidade desta vitamina e provocar amnésia alcoólica.
Devemos dar preferência para os açúcares dos vegetais (frutose) que elevam os níveis glicêmicos lentamente, o suficiente para ter energia para os processos cognitivos; os açúcares de cadeia curta, como os refinados (sacarose) e farinhas brancas elevam em demasia os níveis glicêmicos gerando estresse para o corpo e para a mente e diminuindo a capacidade de atenção e concentração.
O estudo da neurofisiologia e da neuroquímica por parte dos educadores pode alterar profundamente os hábitos alimentares de toda a comunidade escolar, e serem aliados poderosos nos processos educacionais, além de aprender sobre bons hábitos alimentares, compartilhar o alimento aumenta as amizades, a empatia e os vínculos emocionais entre as pessoas.
Outro importante aspecto para a educação é o entendimento do funcionamento das substâncias na fenda sináptica. Nesta região, enquanto nos botões préssinápticos são liberados os neurotransmissores (as chaves), no botão pós-sináptico existem receptores (fechaduras), locais nos quais estes neurotransmissores se ligam para promover a abertura de canais que estimulam o neurônio pós-sináptico, novamente em linguagem metafórica, como uma chave em uma fechadura. Muitos dos nossos conhecimentos, advindos das propostas psicofarmacológicas, se fundamentam na ideia de que quanto mais neurotransmissor (mais chaves), melhor, o que pode ser analisado a partir dos mecanismos de ação dos principais medicamentos utilizados, como o Metilfenidato, princípio ativo que é prescrito para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e Impulsividade, também utilizado como psicofármaco em inúmeros outros diagnósticos ou sintomatologias, ver revisão das controvérsias em Campbell-Araujo e Figueroa-Duarte, 2002. Esta substância atua mantendo a dopamina, neurotransmissor envolvido com inúmeros processos mentais tais como sistema de recompensa, controle da motricidade fina e controle dos impulsos, por mais tempo na fenda sináptica, o que significa maior estimulação dos receptores e maior atividade neural nas vias dopaminérgicas específicas. As etapas dos principais eventos relacionados ao mecanismo de ação dos neurotransmissores e a interação com algumas substâncias pode ser visualizado na Figura 2.


Figura 2 – Exemplos das diferentes etapas da transmissão sináptica e como algumas drogas  (agonistas e antagonistas) podem alterar a transmissão.
FONTE: CARLSON, Neil. Fisiologia do comportamento. 7.ed. São Paulo: Manole, 2002. p.106.

No entanto, em um estudo realizado em macacos submetidos à dependência de cocaína que se autoadministravam a droga, os indivíduos que gozavam de maior prestígio e estavam mais acima na hierarquia social usavam significativamente menos droga do que os subordinados, e apresentavam maior nível de receptores (as fechaduras) para dopamina da classe D2, relacionado ao sistema de recompensa (Kuhar, 2002). Mais receptores para o prazer, menores as chances de comportamentos de risco e uso abusivo de drogas. A cocaína também é uma substância que inibe a recaptação da dopamina, aumentando a sensação de recompensa no cérebro, motivo pelo qual esta droga provoca forte dependência química. Portanto, mais importante do que despejar ou manter grandes quantidades de neurotransmissor na fenda parece ser apresentar uma maior quantidade de receptores no botão préssináptico.
Muitos desdobramentos para análise e discussão emergem destes conhecimentos de neuroquímica, mas podemos destacar dois pontos cruciais na prática e crítica docente. Primeiramente, o uso indiscriminado e pouco criterioso de grandes quantidades de psicofármacos com muitos efeitos colaterais indesejáveis (vide qualquer bula de Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina nos transtornos do humor ou de fármacos a base de metilfenidato como o Concerta, 2015) e efeitos terapêuticos questionáveis. O outro ponto está relacionado imediatamente com um papel central da escola, o de inclusão e ponto de suporte para o crescimento pessoal e ascensão social. A escola na maioria das vezes é o único lugar da realidade social de nossas crianças e adolescentes que possibilita um vislumbre real de melhoria na qualidade e satisfação frente à vida, um aumento nas chances de sobrevivência e perpetuação de si, bem como, coerência de suas estruturas. Colocar o aluno “para cima” de maneira apropriada é papel crucial de qualquer educador.
Nos estudos básicos sobre o tecido nervoso, na formação continuada para educadores, valiosos são os estudos sobre neuroplasticidade. A plasticidade neural pode ser definida como toda modificação estrutural ou química no sistema nervoso decorrente da aprendizagem, de experiências, após lesões, traumas (Lent, 2004). Mudanças no ambiente externo e/ou interno do organismo geram respostas plásticas dos neurônios. O principal propósito da aprendizagem é adaptar o organismo com sucesso ao ambiente, que está sempre em mudança. As mudanças no ambiente podem representar mudanças significativas na morfologia celular do cérebro e na sua anatomia. Existem inúmeras maneiras de estas mudanças ocorrerem, a mais comum delas é a proliferação dos espinhos dendríticos, que crescem na direção de outros neurônios para estabelecer novas conexões sinápticas. Como discutido anteriormente, um neurônio pouco estimulado, uma célula estelar (formato de estrela) localizada na superfície do cérebro, apresenta aproximadamente 10.000 conexões com outras células neurais. A partir da estimulação diferencial, este número pode saltar para 100.000 conexões. Existe um crescimento dos dendritos em direção a outras células neurais a partir do momento que o neurônio necessita produzir respostas a mudanças do meio. Em dois grupos de ratos, um submetido a ambiente empobrecido com apenas comida e água, e o outro grupo com ambiente enriquecido com barra para roer, roda de estimulação, rampa e estratos elevados do ambiente e posteriormente foram analisadas as células estelares do córtex cerebral nos dois grupos de ratos. As células estelares são as principais células relacionas a plasticidade neural a partir da aprendizagem. No grupo de ratos com ambiente enriquecido, as células estelares proliferaram suas conexões para dar conta de responder ao enriquecimento e aumento de estímulos, como pode ser visto na Figura 3.




Figura 3: Experimento demonstrando a plasticidade neural a partir da aprendizagem e do aumento do número de conexões neurais das células estelares do córtex.

Ambientes educacionais empobrecidos não proporcionam a proliferação ampla de conexões sinápticas, o que pode ter implicações negativas para futuras reestruturações ao longo da vida do indivíduo. Os painéis, exposições de trabalhos dos alunos, esquemas e mapas conceituais, herbários e laboratórios, hortas, computadores e demais instrumentos disponibilizados nas salas de aula equivalem aos brinquedos na caixa do segundo grupo de ratinhos. Os trabalhos dos alunos expostos nas paredes da sala de aula apresentam um componente a mais neste sentido, pois proporcionam vinculação emocional ao ambiente de aprendizado, respostas de vínculo, segurança e pertencimento, diminuindo o estresse. Não por acaso, as crianças procuram imediatamente os seus trabalhos entre os vários publicados nas paredes da escola.
            Outra questão importante é a ocorrência do que Ramachandran denomina “membro fantasma”. Este pesquisador da Universidade da Califórnia, em San Diego, realizou inúmeros experimentos de discriminação de estímulos sensoriais utilizando um cotonete, mas também trabalhou com pessoas que haviam amputado alguma parte do seu corpo. Durante um experimento com um homem que havia amputado o braço, o pesquisador solicitou para ele que fechasse os olhos e tocou suas bochechas com um cotonete. O paciente relatou estar sentindo o cotonete na bochecha e no seu braço amputado. Como o homem sentiu o toque na bochecha e no seu braço amputado? O que ocorre neste caso é que o mapa somatossensorial, ou seja, as áreas corticais primárias das sensibilidades do corpo são adjacentes umas as outras, e muitas vezes estas representações podem se confundir (Ramanchandran, 2004). Ver o texto sobre mapas somatotópicos em Relações entre imagem corpórea e identidade sexual e social.
            De maneira ampla o cérebro pode se adaptar consideravelmente ao longo da vida. Uma criança apresenta um potencial maior de plasticidade do cérebro do que um indivíduo adulto, mas os inúmeros casos de pessoas que sofreram traumatismos cranianos com lesões no cérebro ou mesmo de isquemias e acidentes vasculares cerebrais e que perdem alguma habilidade específica, como a fala, ou a motricidade de um membro, ou mesmo a sensibilidade de uma área do corpo e que com o tempo voltam a ter estas habilidades novamente. Áreas adjacentes àquela lesionada assumem o controle ou a percepção do conjunto de neurônios mortos. A estimulação será importante componente de reabilitação neuropsicológica, trabalho amplamente desenvolvido por fonoaudiólogos, fisioterapeutas e neuropsicólogos. Pouco na literatura é discutido sobre o papel da estimulação diferencial e seu uso nos ambientes educacionais em crianças com dificuldades de aprendizagem ou aquelas que desejem melhorar suas habilidades e aptidões ou adquirir algumas novas.
Em um experimento clássico (Jenkins et. al., 1990) um macaco foi treinado por uma hora por dia para realizar uma tarefa que requeria o uso dos dígitos 2 e 3, e ocasionalmente, o dígito 4. Após 3 meses eles mediram as áreas do córtex motor primário dos indivíduos antes e depois de receberam a estimulação diferencial. A figura 4 ilustra as alterações estruturais do encéfalo devido à aprendizagem.



Figura 4 - A1: Estimulação diferencial dos dígitos 2,3 e 4 de macaco, A2: áreas do mapa somatotópico no córtex representando os dígitos antes da estimulação diferencial e A3: após a estimulação diferencial.
FONTE: KANDEL, Eric, SCHWARTZ, James e JESSELL, Thomas. Princípios da neurociência. São Paulo: Manole, 2003. p.1274.

            Proporcionar e motivar o educador e educadora para a busca de conhecimentos nas áreas de Neurociências, Fisiologia e Ciências Cognitivas de forma aprofundada é de fundamental importância se quisermos melhorar as capacidades de aprendizado dos educandos, fundamental para todos os processos de educação inclusiva e especial. Também estes conhecimentos se tornam particularmente importantes no que tange a uma formação crítica do educar/educadora, bem como, nos desafios que constituem o fazer educacional em tempos de humilhação, desmerecimento e ridicularização do papel do professor, delegado a um plano marginal e com condições de trabalho insalubres. Educar e instruir não são papéis para aventureiros, nem tampouco deve ser pensado por políticos que desconheçam os processos e a importância desta instância na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Referências bibliográficas:
Callegaro, J. N. Mente criativa: a aventura do cérebro bem nutrido. Petrópolis: Vozes, 2006.
Campbell-Araujo, O. A. & Figueroa-Duarte, A. S.  Trastorno Del déficit de La atención-hiperatividad (TDAH): Tópicos de controversia em su dignóstico y tratamiento. Archivo de Neurociencia de México. 7(4): 197-212. 2002.
Carlson, Neil. Fisiologia do comportamento. 7.ed. São Paulo: Manole, 2002.
Concerta: Cloridrato de Metilfenidato. São José dos Campos: Janssen-Cilag Farmacêutica LTDA, 2015. Bula de remédio. Disponível em: http://www.janssen-cilag.com.br/bulas/concerta%C2%AE. Acesso em: 20 jan 2015.
Kandel, Eric, Schwartz, James e Jessell, Thomas. Princípios da neurociência. São Paulo: Manole, 2003.
Kuhar, Michael. Social rank and vulnerability to drug abuse. Nature Neuroscience 2(5):88-90, 2002.
Lent, Roberto. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências. São Paulo: Atheneu, 2004.

Ramanchandran, V. S. & Blakeslee, S. Fantasmas no cérebro. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.

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