Neurociências e Comportamento na Educação de Crianças e Adolescentes

Texto original publicado em Direcional Educador, Ano 3, ed.31, pp.14-16.

Por Rodrigo Sartorio

Nas últimas duas décadas, graças ao acúmulo de informações, maiores investimentos em pesquisa e a constante divulgação na mídia, são crescentes o interesse e a importância, nas diversas áreas do conhecimento, acerca das Neurociências, o funcionamento do cérebro, seu desenvolvimento e as respostas eliciadas pelo sistema nervoso (SN). Novas abordagens na escola sobre o organismo humano e a inclusão de disciplinas sobre a biologia da aprendizagem nos currículos de formação de professores têm conquistado espaço no processo educacional, formal e não formal. Poderíamos destacar três pontos importantes desta interface entre educação e neurociências: 1. uma perspectiva do desenvolvimento infantil, que pode orientar nossos esforços para compreender como se organiza o SN e o aprendizado durante a infância; 2. a perspectiva da adolescência e todos os riscos e a importância que acarreta na formação de bons hábitos físicos, morais e emocionais; 3. uma perspectiva social, com ganhos significativos na vida moral e emocional, e enriquecimento das relações pessoais, facilitação da aprendizagem de conteúdos, políticas de redução de danos, analfabetismo e criminalidade.

Para compreendermos melhor a aplicabilidade dos estudos em neurociências nos processos educacionais alguns pressupostos e processos básicos da biologia e do cérebro são necessários. Primeiro devemos entender que nosso cérebro foi forjado pela seleção natural em um ambiente ancestral primitivo, no qual não havia internet, automóveis, aviões e globalização da cultura e do capital. Os hominídeos sofreram inúmeras pressões que selecionaram as características atuais do nosso cérebro, como as necessidades por alimento, respostas rápidas às alterações do ambiente, liberação das mãos e as conseqüências na manufatura de utensílios, elaboração de estratégias para subir na hierarquia social, incluindo a mentira e sua detecção, formação de alianças, partilha de alimento e o cuidado cooperativo das crias. A linguagem e o pensamento simbólico ocupam papel central devido à possibilidade de uma consciência expandida no tempo e no espaço e uma consciência conceitual, e em decorrência emergem as construções de casas e embarcações, a diversificação dos instrumentos, cultura, arte, música e rituais fúnebres (Leary & Buttermore, 2003).

No seu livro “A pré-história da mente” de 2002, Steven Mithen coloca que o cérebro primitivo dos hominídeos se aproximava da idéia de um canivete suíço, com muitas lâminas, cada uma com utilidade específica, assim também nosso cérebro teria algumas áreas com funções específicas, utilizadas na medida das circunstâncias. Ao longo da evolução o cérebro dos humanos modernos teria adquirido a configuração de uma capela, com uma nave principal, bem extensa no início da vida e que perderia parte do seu tamanho devido ao crescimento de naves menores adjacentes que tomariam o espaço daquela principal ao longo do desenvolvimento cognitivo, sensorial e físico, cada nave menor com funções relativamente específicas e interconectadas pela nave principal (Mithen, 2002).

O segundo ponto assenta justamente nas alterações do sistema nervoso que correspondem à imagem de naves de uma capela. Na primeira infância ocorre de forma acentuada um processo denominado exuberância sináptica; o surgimento de novos neurônios e sinapses (que são pontos de encontros entre neurônios) específicos dos sistemas motor, sensorial, emocional e das áreas associativas, que ocorre de forma marcante, quanto mais tenra for a idade do infante, e quanto maiores forem os estímulos que recebe em relação as diferentes habilidades, sejam motoras, espaço temporais, pensamento lógico matemático, moral, socialização, empatia, a própria linguagem sendo constituída no engajamento conjunto da atenção, no “manhês” utilizado pelos cuidadores. Mais estímulos, mais sinapses, mais potencialidades para resolução de problemas e habilidades especiais apresentadas por atletas, musicistas, pensadores; como diz o jargão popular “a excelência se adquire cedo”. Cada uma destas habilidades é como uma pequena nave da capela, a espera para se desenvolver, reafirmar, especializar. Vale ressaltar que cada indivíduo é único nesta formação, nesta interação com o meio, neste acoplamento estrutural e trás aptidões físicas, químicas e biológicas que devem ser respeitadas durante o processo educacional.

Um bom exemplo é a vida de Mozart, o infante musicista. O ambiente musical, bem como aptidão para música fazia parte da família deste jovem prodígio; seu pai e sua irmã eram musicistas e, enquanto seu pai compunha ao piano, embalava o bebe Mozart na perna. O movimento estimulando fortemente o sistema motor, combinado com os estímulos auditivos, visuais e do sistema vestibular (equilíbrio e sensação da posição do corpo), somando o ambiente festivo e rico em termos emocionais motivou e habilitou o cérebro do menino para a música, com seus neurônios e sinapses especializados.

Durante o processo de exuberância sináptica da infância devemos enriquecer os ambientes de aprendizado: propor problemas éticos e morais para as crianças; auxiliar na elaboração da memória de trabalho oferecendo tarefas que requerem diferentes etapas e processamentos; trabalhar o conhecimento do corpo e das potencialidades do mesmo por meio da valorização da educação física, das artes; promover eventos e socializações de maneira a conduzir as crianças a um maior grau de empatia e cooperação e, principalmente, proporcionar e valorizar a brincadeira, que é uma atividade de estimulação ampla, não diretiva ou tendenciosa, afinal, não desejamos autômatos, como o programa behaviorista de Skinner pregava, e sim, adolescentes e adultos plenos em suas potencialidades de trabalho, amor e sabedoria.

Se devidamente estimulado o processo de exuberância sináptica teremos cérebros aptos ao programa de lapidação sináptica que segue na adolescência, fase em que até 30% das sinapses e neurônios desaparecem para dar espaço a uma especialização das áreas e habilidades (Herculano-Houzel, 2005; Giedd et. al., 1999). Gosto de trabalhar com o exemplo de alguns atletas, em especial o Ronaldinho Gaúcho. Seu irmão, também jogador de futebol e seu pai, um entusiasta do esporte foram fortes referências, e ele parece ter brincado amplamente de jogador de futebol, pois sua mãe conta que enquanto trabalhava nos afazeres da casa, Ronaldinho driblava mesas, cadeiras, o cachorro. Durante a adolescência, já no time de base do Grêmio Portoalegrense, foram selecionadas de forma positiva no seu cérebro as sinapses necessárias para tornar-se um jogador profissional, em detrimento de outras habilidades, como as artes plásticas, por exemplo, que desconheço ocorrerem com Ronaldinho. Estas sinapses do sistema motor, das noções de espaço e tempo, de respostas rápidas em relação aos adversários sofreram um processo denominado mielinização axônica, ou seja, as fibras nervosas dos neurônios e sinapses relacionados a estas habilidades, devido ao uso constante destas vias, adquirem um aumento na capa lipídica que as envolvem, como um fio melhor encapado, aumentando a velocidade e eficiência da condução do sinal eletroquímico entre um neurônio e outro, num evento que podemos ilustrar quando dirigimos automóveis ou andamos de bicicleta, os quais, após algum treino, dizemos realizar “sem pensar”. São os comportamentos automatizados, que maximizam nossas respostas motoras, lingüísticas, morais ou um conjunto destas quando nos tornamos “bons” ou adquirimos excelência em algo.

Alguns efeitos advêm deste processo, por exemplo, a propensão a riscos inerente a adolescência; isso se deve em grande medida a perda de 30% das sinapses dopaminérgicas de uma área do córtex chamada núcleo acumbente, dopamina é um neurotransmissor liberado nas sinapses e esta relacionado com o prazer ou sistema de recompensa do cérebro, bem como no sistema de reforçamento dos comportamentos, sejam eles motores ou sociais. O mal de Parkinson é uma perda da mielina e dos axônios que conduzem impulsos nervosos no sistema de reforço, afetando o comportamento motor, diminuindo a velocidade, controle e automação dos movimentos. A perda de 30% das sinapses dopaminérgicas do núcleo acumbente diminui a sensação de prazer, não bastando mais brincar de roda, no clássico “de novo” que as crianças tanto exibem em seu comportamento, faz-se necessário pular de “bung jump”, transar sem camisinha ou correr a 140 km/h nas madrugadas para elevar a quantidade de dopamina despejada nesta área e, conseqüentemente, a sensação de prazer proporcionada ao cérebro. Alguns adolescentes são mais propensos a riscos e ao uso de drogas, que ativam este sistema, por possuírem naturalmente menos sinapses dopaminérgicas, como adolescentes hiperativos ou que apresentam comportamentos impulsivos, para outros bastará ler um bom livro de ficção ou aventura para sentir prazer. Isso explica em grande medida diferenças individuais nos comportamentos de risco em adolescentes.

Outro aspecto importante é em relação ao esquema corporal, um mapa do corpo em nosso cérebro, mais especificamente no giro pós-central e no córtex parietal, que nos informa a extensão, posição e amplitude de nosso corpo. Ao longo do desenvolvimento vamos criando este mapa e na adolescência o corpo ganha proporções de forma acelerada, de até 25 kg e 30 cm a mais no tamanho em dois ou três anos, mas o esquema corporal não acompanha tal crescimento. O mesmo acontece com mulheres grávidas, que com freqüência esbarram o ventre por perder a noção de tamanho no cérebro desta área do corpo. Adolescentes vivem esbarrando seus braços e mãos em copos e pratos da mesa de jantar, ou apresentam aquele caminhar desengonçado e a fala não modulada, ou mesmo aquela batida mais forte na porta, que pode ser facilmente confundida com desrespeito e rebeldia (Herculano-Houzel, 2005).

Outras áreas do cérebro responsáveis pela antecipação dos atos danosos, das habilidades sociais, da empatia e moral também precisam de tempo para as devidas lapidações e automações no processamento neural através da mielinização das fibras axônicas, necessárias a uma vida adulta plena. Quando isto não ocorre, como nos portadores da Síndrome do X-frágil, o cérebro fica cheio de sinapses, de possibilidades, mas não se torna especializado em nada, ocasionando um déficit cognitivo grave.

Neste sentido, como conhecedores das necessidades de maturação das áreas citadas e do funcionamento do SNC, podemos fornecer enquanto educadores algumas possibilidades de enriquecimento na aquisição das habilidades sociais. As áreas do córtex envolvidas com o pensamento abstrato carecem de textos sobre política, filosofia, literatura, e discussões acaloradas sobre estes temas, e mesmo os adolescentes são ávidos por isso. Música alta, combinado com a presença de amigos e colegas possibilita um amadurecimento das áreas responsáveis pelo esquema corporal, por preencher o espaço com as ondas sonoras e por motivar a dança e a interação. Espelhos também facilitam o desenvolvimento de uma noção apropriada do corpo e da identidade, por este motivo os adolescentes podem gastar um tempo razoável se observando. Amigos e a escola são ótimos ambientes para aprender a tomar boas decisões emocionais, aprender a reconhecer as emoções dos outros e se posicionar de maneira empática, asseguradas pelo córtex órbito-frontal (entra as órbitas dos olhos) e o córtex temporal-superior (logo acima das orelhas), áreas diretamente relacionadas com habilidades sociais, tomada de decisões morais e a sensação de fazer parte de algo maior, sublime.

Por fim, gostaria de destacar as áreas relacionadas à moralidade. A moralidade é o ponto de encontro entre emoções e razão, geralmente confrontando-se. No desenvolvimento do juízo moral identificado por Piaget (1977) temos duas fases distintas de formação das concepções morais em crianças: uma fase de heteronomia, onde as regras ditadas pelos adultos são impostas e aprendidas pelas crianças sem que as mesmas julguem a intencionalidade da ação, e uma segunda fase, de autonomia, na qual o sujeito já separa a noção de justiça daquela de autoridade. Crianças de 6 anos já são capazes de conceber uma ordem materna como injusta, mas mesmo assim preconizam a obediência. A partir de 8/9 anos a desobediência já é vista como correta. Aos 12 anos um sujeito já é capaz de ter autonomia moral (Piaget, 1977). Em torno de 16 anos, em média, ocorre o corte e seleção de sinapses e neurônios necessários para decisões morais rápidas exigidas na fase adulta (Giedd et. al., 1999). Por outro lado, a busca hedonista presente na maioria dos adolescentes pode mascarar suas habilidade morais, o que deve ser compensado propiciando fontes de prazer alternativas como esportes radicais, aventuras na natureza, jogos e simulações e emprestando nossas capacidades de cérebros adultos durante as conversas francas e exemplos honestos na convivência com os mais jovens.

Se confrontarmos nossas crianças e adolescentes com situações problemas que exijam dos mesmos a execução de decisões morais, de antecipação dos danos provocados pelos atos e no reconhecimento e julgamento adequados das emoções, estaremos propiciando uma maturação das áreas do cérebro responsáveis por estas habilidades, aumentando assim as chances de serem adultos cooperativos, empáticos e emocionalmente sadios. Vale lembrar que quanto mais velha a árvore, mais difícil de endireitar seus troncos e galhos.

Referência bibliográficas:

Giedd J. N., Blumenthal J., Jeffries N. O., Castellanos F. X., Liu H., Zijdenbos A., Paus T., Evans A. C., Rapoport J. L. Brain development during childhood and adolescence: a longitudinal MRI study. Nature Neuroscience 2:861-863, 1999.

Herculano-Houzel, Suzana. O cérebro em transformação. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

Mithen, Steven. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, religião e da ciência. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

Leahy, Mark R. & Buttermore, Nicole R. The evolution of the human self: tracing the natural history of self-awareness. Journal for the Theory of Social Behaviour 33(4): 365-404, 2003.

Piaget, Jean. O julgamento moral na criança. São Paulo: Mestre Jou, 1977.